Um
tempo atrás fiz algo que não fazia já há um bom tempo: comprei uns discos.
Discos físicos, CDs, aquele formato ultrapassado, quase morto. Mas que ainda
resistem, aguardando seus últimos suspiros.
Eu
mesmo resisti bravamente até onde pude. Comprava discos quando praticamente ninguém
mais o fazia. Quando todos já baixavam em mp3 e, posteriormente, ouviam em
streaming. Comprava porque ainda acreditava naquela qualidade física, tátil, e,
sejamos francos, possessiva.
Aquele
disco era meu, fui lá, escolhi, paguei, e cada escutada é prova de meu
investimento em ação. Assim como o investimento do artista, que foi lá, gravou
entre 10 e 14 músicas, pensou na melhor ordem para arranjá-las em um trabalho
coeso, completou com um projeto gráfico que dialogasse com a sonoridade,
lançando tudo num pacote atraente. Apenas para a molecada mais nova ignorar tudo
isso solenemente e ouvir só uma ou duas faixas nas plataformas digitais e olhe
lá.
Eu
tenho uma personalidade de colecionador. Quando gosto de algo, gosto de ter
aquilo. Sejam discos, filmes, livros, quadrinhos, gosto de ter a possibilidade
de, se quiser revisitar aquela obra a qualquer momento, ela estar ao meu
alcance físico, sem precisar ligar o computador para isso.
Nem
vou entrar em méritos e deméritos de consumismo e possessividade, já fiz essa
autoanálise e prefiro deixá-la só para mim. Acima de tudo isso, é simplesmente
bom pegar algo na mão, sentir nos dedos. A música pode sim ser tátil e o foi
durante décadas, tá aí o vinil até hoje, talvez o maior exemplo de fetichização
musical, desde tirar a bolacha da capa, sentir seu cheiro característico, até o
momento em que a agulha entra em contato com as ranhuras, fazendo aquele
barulhinho tão próprio.
CDs
eram assim para mim. Foi a plataforma da minha geração. Gostava do ritual
inteiro. Desde abrir o plástico que embrulhava o disco novo, colocá-lo no
aparelho de som (lembra deles?), manusear o encarte e, se houvesse, ler as
letras enquanto ouvia as canções. Isso fez maravilhas pelo meu inglês.
No meu tempo é que era bom
Claro,
isso era coisa de moleque, na vida adulta não é tão fácil arrumar tempo para
verdadeiramente ouvir música. Escutar enquanto não se faz mais nada e não como
mera atividade paralela, como ruído de fundo, para abafar aquele silêncio tão
incômodo, Deus o livre de ficar um segundo sequer sozinho com os seus
pensamentos...
Hoje
o lugar onde mais ouço música é no carro e não em casa. Mas ainda assim
comprava discos, no final mais pelo puro colecionismo, pela completude da discografia
de alguma banda/artista do que por qualquer outra coisa. Já não era mais por
prazer.
Achava
que nunca ia me cansar da música, que em um momento ou outro ela sempre acharia
o caminho de volta (como já havia acontecido algumas vezes). Que aqueles que
diziam que não se fazia mais nada de novo bom – que não ouviam mais novidades –
eram clichês ambulantes, e que isso jamais aconteceria comigo. Escrevi até
textos explorando esse ângulo.
Mas
a vida é imprevisível e, quando menos percebi, exatamente isso acabou
acontecendo comigo também. E nem foi aos poucos, ainda que não seja capaz de
precisar um momento específico. Mas chegou uma época em que simplesmente...
desencanei. De praticamente tudo na música. Parei de comprar CDs, ainda
baixava, mas mal escutava. Duas ou três vezes, se tanto, e ia para alguma pasta
no meu computador pegar poeira virtual.
Virei
o clichê que tanto combatia. Novos artistas não ouço mais. Não tenho mais saco
para ir atrás, e mesmo quando alguma coisa é recomendada, dou uma orelhada e invariavelmente
penso uma de duas coisas: fraco ou nada de mais. Aquela sensação incrível de
moleque, de ouvir uma daquelas que seriam uma de suas bandas favoritas pela
primeira vez, aquela coisa que mexia com seu cérebro e sensações físicas e
emocionais, tentei recapturar muitas vezes sem sucesso ao longo desses últimos
anos até me conformar de vez.
Meu
gosto pessoal está formado, e nada mais vai me surpreender. Aquela coisa de
“uma banda pode salvar sua vida” ficou na adolescência e início da vida adulta.
E não volta mais, fato.
Mesmo
novos trabalhos de artistas que eu gosto já não me empolgam mais. Caí naquele
segundo clichê do fã, aquele para o qual os primeiros trabalhos são sempre os melhores.
Artistas da música (pelo menos os do rock), diferente do vinho, não costumam
envelhecer bem. Ouvia os trabalhos novos só para constar. Até que deixei de
ouvir, até mesmo meu completismo antes beirando o obsessivo cedeu e caiu de vez perante esse desencanto.
Não
vou entrar na discussão sobre a qualidade geral dos artistas contemporâneos
e/ou o fato de que a música acessível de todos para todos, a um mero clique de
distância, diluiu gostos musicais e tornou menos especial o fator da descoberta.
Tudo isso são assuntos maiores e que não vêm ao caso no momento.
Prateleiras
físicas com poeira de verdade
A
questão é que, depois de muito tempo, comprei dois discos. Numa loja. Eu sei,
elas ainda existem, de vez em quando a gente até esquece disso. Tá, não foi
aqui no país. Foi numa viagem que fiz pra fora. A loja (de uma franquia que
aqui já foi forte, mas definhou e morreu até sair totalmente de nossas terras)
estava ali, deu vontade e entrei.
Comparado
com as gigantescas lojas de outrora, a sessão de discos era minúscula. Mas
ainda tinha coisas que eu não encontraria aqui mesmo no auge dos
estabelecimentos nacionais.
Pra
ver como estava distante dessa parte tão importante da minha formação cultural:
vou displicentemente dar uma olhada na seção da minha banda favorita, e me
deparo com um disco que não apenas eu não tinha, como nunca tinha ouvido falar.
Era uma coletânea de gravações feitas para um programa de uma rádio britânica
entre os anos 1970 e 80, mas o álbum em si era do ano passado. Um ano inteiro
se passou sem que eu soubesse de sua existência.
Foi
uma constatação triste, saber o quanto eu me desliguei de algo que antes era
tão importante para mim. Por outro lado, ao me deparar com aquele objeto
estranho, por uma fração de segundos aquela fagulha reacendeu. Eu achava que
tinha tudo deles, até o último lado b obscuro. Pense de novo, eis algumas
versões que você ainda não ouviu. O moleque de 15 anos que um dia fui mandou um
oi lá do fundo da minha consciência.
Aí
me lembrei de outra banda. Sempre quis seu disco mais conhecido, mas nunca o
achava para comprar. Dei de cara com uma edição especial comemorativa do seu aniversário
de 20 anos. O disco remasterizado acompanhado de material extra, faixas ao
vivo, demos, o esquema todo.
Eu
consegui sentir meu sorriso se abrindo quando o peguei na mão. Naqueles breves
minutos na loja, com aqueles dois CDs em minhas mãos, relembrei o que a música
tem de especial para mim, e tudo aquilo que andava enterrado nos últimos
tempos.
Claro,
eu só poderia ouvi-los quando voltasse para casa, mas mesmo essa espera gerou
aquela expectativa boa, do momento onde ia parar tudo (porque eu ia parar como
o fazia antigamente, a ocasião pedia) para ouvi-los.
Aquela
velha sensação
Nesses
poucos minutos me deu saudade de voltar a comprar discos, não pela internet,
como fazia já na minha chamada fase terminal, mas presencialmente. Perambular
pelas gôndolas, dedilhando as caixas, tentando encontrar aquela joia perdida,
escondida entre tantos outros. Não ter um objetivo definido, mas sim ser
surpreendido, descobrir algo novo casualmente. Algo que torrents e streamings
mataram, com suas milhões de opções na ponta dos ouvidos convidando ao descaso
imediato.
É
outra forma de se ouvir música. Nem certo nem errado. Só não é a minha forma de
se ouvir música. E eu nem sou tão velho assim para renegar a tecnologia. Nada
contra, ela é útil e prática. Conheci muitas bandas e artistas que do contrário
jamais teria acesso. Mas repito: não é a minha forma de ouvir música.
Naquele
encontro casual com aquela loja de discos, fui relembrado de algumas boas
sensações que a minha forma de abordar a música me proporciona. Eu não estava
morto por dentro para ela, apenas hibernando.
Bom
saber que ainda era capaz de sentir um pouco daquela excitação juvenil. Agora
sei que ela ainda está por aqui, é muito mais difícil trazê-la à tona, mas
ainda é possível.
Sei
também que essa compra foi um fato isolado. Não vou voltar a comprar discos com
a regularidade dos bons tempos. É capaz até de passar mais alguns anos sem
adquirir nenhum álbum novo (baixar na internet não conta), mas se o acaso me
colocar novamente em uma situação similar, por que não?
Aqueles
discos em minha mão, a música não apenas como meio sônico, mas também tátil,
esse é o meu modo de apreciá-la. Nada contra o vazio do ciberespaço, mas música
você ouve, você enxerga, está ao alcance de seus dedos, não em sentido
figurado, não como metáfora para a facilidade da internet, mas no sentido
literal. Eu fui, peguei, transportei. Música quando mídia tátil.
As
pequenas alegrias. Às vezes cabem na palma da mão.