Como compositor, Chico Buarque preza como poucos a língua, o domínio das palavras. Então não deixa de ser natural que esta característica tão marcante acabasse por transparecer em seu trabalho como escritor, e ainda como o tema principal de seu terceiro romance, Budapeste, de 2003. A saber: os outros dois anteriores foram Estorvo, de 1991 e Benjamim, de 1995.
Nesta mais recente empreitada o autor apresenta José Costa, um ghost writer. Trata-se de um escritor que cria artigos, discursos, notas e o que mais for preciso para quem contrata seus serviços creditar como seu. Nessa condição de nunca poder levar a fama pelo seu trabalho, já que este consiste em ceder sua propriedade intelectual garantindo confidenciabilidade, Costa se concentra no domínio completo da língua portuguesa e na evolução de seus textos, nutrindo por eles um cuidado e um amor incondicionais.
Também dotado de um bom ouvido para línguas estrangeiras, fica fascinado com o idioma húngaro, “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”, desde uma escala forçada em Budapeste durante uma viagem.
E é para lá que ele vai após escrever uma suposta autobiografia de um empresário alemão que surpreendentemente se torna um best seller. Na Hungria, ele encara o desafio de dominar uma das línguas mais difíceis do mundo tão bem quanto o português, a ponto de assumir até uma nova identidade, tornando-se Zsoze Kósta.
Para um romance tão curto (apenas 174 páginas) e com uma trama que a princípio parece bem simples, é impressionante notar a riqueza de detalhes que Chico conseguiu conferir ao livro, ao mesmo tempo em que foge de uma narrativa tradicional, nublando as noções de tempo e espaço, dessa forma criando algo quase onírico.
As passagens de tempo não são demarcadas de maneira óbvia, ficam implícitas na narrativa, e embora essa opção não torne a leitura confusa, confere a ela um ar um tanto quanto atemporal. O decorrer do tempo na trama é menos importante do que a jornada de Costa por Budapeste e seu aprendizado do idioma magiar.
Essa característica temporal, aliada às passagens que retratam seu convívio familiar, também serve para marcar um estado de constante estupor do escritor. Casado com uma repórter de televisão, Vanda, e pai de um filho pequeno, que, mesmo com cinco anos, mal consegue falar duas palavras, é nítida a intenção de Buarque de retratar um desapego de Costa com relação à própria família, tornando seguro dizer que, para o personagem, eles são meros coadjuvantes em sua história, onde apenas as palavras e um profundo conhecimento de um outro idioma que lhe representa um desafio à altura, no caso o húngaro, de fato importam.
Teoria essa salientada pelo fato de Vanda desconhecer e/ou não mostrar nenhum interesse por seu trabalho, e por seu filho simplesmente não conseguir articular uma única e simples frase, algo que para ele, que preza tanto isso, deve ser um suplício. Interessante notar que mesmo ao final da narrativa, quando reencontra seu rebento já crescido, este se comunica com José por gestos.
Outro ponto que marca tal estupor é o elemento da insônia. Sem conseguir dormir, José perambula sem muito objetivo de dia, assiste televisão sem interesse e novamente não nota a passagem das horas (e até mesmo dos dias), deixando claro que ele realmente só fica totalmente desperto, ou realmente vivo, quando está trabalhando e, mais tarde, quando passa a aprender o húngaro.
E mesmo assim, em algumas passagens, esse estado de semiconsciência leva o próprio protagonista, bem como o leitor, a duvidar se certas coisas de fato acontecem ou não passam de fruto da fértil imaginação de José, nublando ainda mais a barreira entre o real e o ficcional, contribuindo para o aspecto onírico do livro.
Essa característica torna-se mais clara quando Costa encontra outro personagem de destaque para a narrativa, Kriska, a bela húngara que ele conhece em Budapeste quando para lá decide ir durante suas férias. Fascinado pelo idioma, em Kriska José encontra uma professora que lhe guiará pelos seus mistérios lingüísticos.
E ao mesmo tempo, pode-se até perceber uma relação edipiana entre eles. Costa se apaixona pela figura que lhe ensina a falar. Durante seu aprendizado, volta à mais básica forma de comunicação, aprendendo as palavras mais simples. O que de fato é o que acontece com as primeiras palavras de uma criança, geralmente aprendidas com a mãe.
Outras questões, como a perda de identidade e a formação de uma outra completamente nova, no caso a de Zsoze Kósta – que domina tão bem o húngaro que passa a produzir textos irrepreensíveis também nesta língua – são abordados, no entanto, de uma forma um tanto superficial, até pela curta duração do livro. Também não evita de cair em certos clichês, sendo um bom exemplo, a justiça poética que acomete Costa quando, para sua surpresa, em determinado momento descobre que alguém escreveu sua autobiografia e não foi ele. O ghost writer havia ganhado seu próprio escritor secreto.
Com o talento comparável ao de José Costa, Chico Buarque conduz a narrativa muito bem escrita em capítulos e parágrafos longos e com pouquíssimas falas. E quando se utiliza do recurso de exteriorizar os diálogos entre os personagens, o faz não do jeito tradicional, abrindo um novo parágrafo com travessão, mas inserindo-os no meio de parágrafos destinados mais a ações internas, subjetivas, contribuindo ainda mais para salientar certa confusão mental do protagonista, o que não deixa de ser um paralelo interessante com seu primeiro romance, Estorvo, que apresentava tais características.
Mesmo com todos esses elementos que dão uma qualidade a mais à obra, Budapeste ainda é um trabalho focado no entretenimento passageiro. Coloca-se muito à frente da maioria dos exemplares do gênero, mas seu propósito não deixa de ser uma leitura ligeira, mas uma excelente leitura.
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