terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Metamorfose


 
Mudanças, para o bem ou para o mal, fazem parte da vida. O que o escritor Franz Kafka faz em sua obra mais famosa, A Metamorfose, é levar esse conceito um pouco além.
           
Na novela escrita em 1912, o caixeiro viajante Gregor Samsa acorda um dia transmutado em um inseto gigante. Como e por quê isso aconteceu não é explicado e não importa. Tal situação surreal serve como ponto de partida para retratar as alterações que ocorrem no microcosmo de Gregor Samsa: seu apartamento e sua família. Bem como para discutir a questão de humanidade e aproximação com o lado animal. Afinal, o livro todo é contado do ponto de vista de Gregor, que mesmo metamorfoseado, ainda mantém sua consciência, mesmo que no decorrer da história passe a incorporar alguns hábitos típicos da criatura na qual se tornou.
           
Por mais bizarra que essa premissa inicial pareça, o interesse de Kafka é manter a escrita com os dois pés na realidade e não cair para um lado mais onírico. E a realidade do autor é ainda mais cruel do que qualquer horrenda transformação.
           
Por exemplo, mesmo em sua nova e desesperadora situação, num primeiro momento a principal preocupação de Gregor é com seu emprego, o qual não gosta, mas precisa, visto que é ele quem sustenta a família. Isso leva a duas possíveis análises: a tendência humana de tentar racionalizar todo e qualquer fato fantástico ocorrido (afinal, o personagem acredita que seu quadro possa ser revertido e depois dessa dose de sobrenatural tudo voltaria à mais perfeita ordem), ou uma crítica à burguesia (da qual Kafka fazia parte), preocupada em não perder seu status. Coisa que acaba ocorrendo no decorrer da história, com a família tendo que vender objetos da casa, arranjar empregos e no fim, até alugar um quarto para três homens.
           
Outro fator importante da obra é a família de Gregor, formada por seu pai, mãe e a irmã. Os pais não possuem nomes e são referidos apenas como “pai” e “mãe”, o que demonstra um distanciamento de Gregor de seus progenitores, especialmente do pai, retratado como uma figura excessivamente autoritária.
          
Apenas a irmã recebe um nome, Grete, o que indica o enorme carinho de Gregor por ela, algo recíproco, visto que é ela quem cuidará dele a partir de sua metamorfose. Franz Kafka chega a explorar esse sentimento de Gregor por sua irmã no limite da paixão platônica, visto que os relacionamentos passados de Samsa, rememorados por ele em sua grotesca situação, não chegaram nem perto do mesmo impacto que a relação entre os dois irmãos.
          
Kafka também é irônico ao mostrar que o horrendo acontecimento de Gregor serviu para aproximar a irmã do pai e tornar a família mais unida, ainda que passem pela humilhação de se portarem como empregados dentro de seu próprio lar, quando alugam o quarto para os três homens. É quase como se Samsa, antes a figura centralizadora, fosse um empecilho para a união familiar. E dada a situação de pesadelo que ocorre, acaba por ajudar involuntariamente a família a se entender melhor e a demonstrar afeto em face da adversidade. E Gregor, por ter virado uma figura asquerosa, acaba por não poder desfrutar do que proporcionou.
          
Para uma obra escrita em 1912, a novela possuiu uma narrativa extremamente ágil e direta, que não perde tempo com descrições detalhadas e se concentra no forte lado psicológico, talvez o grande ponto forte do livro, e na narração do cotidiano da família Samsa, tentando se adaptar a esses estranhos novos tempos, mas sem nunca se esquecer completamente da criatura trancada no quarto central da casa. Essa disposição geográfica serve como metáfora para ilustrar que mesmo com as mudanças, Gregor, de uma forma ou de outra, continua sendo o centro do microcosmo da história.
           
Ao usar a metamorfose física de seu protagonista como ponto de partida, Franz Kafka pinta um quadro de mudanças psicológicas, de relacionamento entre as pessoas e passa a mensagem de que mesmo as coisas ruins podem ter algo de positivo a oferecer, ainda que um sacrifício seja necessário.
           
Prova disso é o melancólico final, onde Grete desabafa toda sua frustração, mostrando sua nova atitude perante o outrora adorado irmão. Quando o protagonista encontra seu destino – inesperado, tanto pelo personagem quanto pelo leitor – tais mudanças desenvolvidas desde o primeiro parágrafo da história já se tornaram permanentes.  A metamorfose de Gregor pode assustar pelo aspecto físico, mas são as mudanças à sua volta que realmente apavoram e tornam a novela de Kafka uma das obras mais poderosas da literatura.

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