—
Cara, cê já pensou se o Chaves fosse feito hoje?
—
Como assim?
—
Se ao invés de ter sido filmado em mil novecentos e guaraná com rolha ele fosse
filmado hoje em dia.
—
Não dá.
—
Como não?
—
Já morreu metade, e a outra metade já tá tudo velha.
—
Cê me entendeu, se eles tivessem a mesma idade daquela época.
—
Mesmo assim não ia dar.
—
E cê vai dar argumentos ou vai continuar falando gracinha?
—
Antigamente era tudo mais inocente, hoje é tudo mais na cara, mais hardcore.
—
Dá um exemplo.
—
Vamo lá: a Chiquinha sai de casa, atravessa
o pátio e bate no barril do Chaves. Ele se levanta, mas não é possível ver suas
mãos.
—
Por que não?
—
Já chego lá. Lembra que ela queria namorar com o Chaves, né?
—
Lembro.
—
Então: ela já ia chegar querendo ficar com ele, perguntando na lata.
—
Isso não ia ser tão ruim assim.
—
É que cê não sabe a resposta dele. Ele ia dizer que não podia no momento porque
tava pipando. Aí ele levanta a mão, revelando um cachimbo de crack e dando uma
tragada.
— Isso foi grotesco.
—
Eu não disse que ia ser bonito, só tô explicando como ia ser.
—
Vou fingir que acredito. E o Quico.
—
Boyzinho, com terninho de marinheiro, no meio dos marginais? Ia rodar bonito. O
Chaves ia ameaçar ele com uma faca e roubar o celular dele pra descolar uma
garrafa de tequila, aquela com verme dentro, pra esquentar aquele barril de
noite.
— Pra
começar, ele não mora no barril, mora no 8. E de onde cê tirou esse celular?
—
Ué, a ideia não era o negócio ser filmado hoje? Até minha sobrinha de dez anos
tem celular! Ela vai ligar pra quem, pros Ursinhos Carinhosos?
—
E o Quico?
—
Ia chorar na parede. Mas depois a mãe dele dava uma grana pra ele comprar outro
telefone.
—
E aí o Chaves roubava de novo...
—
Agora cê sacou o círculo vicioso. E
por falar na mãe do Quico, se ela estapeasse o Seu Madruga, sabe o que ele ia
fazer?
—
Descer a porrada na Dona Florinda?
—
Que nada, esse aí é esperto, é dos nossos, ia terceirizar o serviço. Contratava
o Chaves pra dar cabo da velha a troco de umas pedrinhas de crack e um
sanduíche de presunto.
—
E aí ele fumava as pedras, comia o sanduíche, pulava a janela da Dona Florinda
e...
—
E que eu não quero nem imaginar. Só sei que ia pular de volta pro pátio com as
mãos todas sujas de sangue. Aí olhava pra câmera e soltava um “foi sem querer
querendo”.
—
Pra que parar na Dona Florinda? Já que é assim, a primeira vez que o Sr.
Barriga aparecesse pra cobrar os 14 meses de aluguel, o Madrugão botava o
Chaves em ação de novo.
—
É o que eu tô te dizendo. O velho barrigão ia levar uma daquelas tijoladas
clássicas na cabeça, manja? Com o retângulo de isopor pintado? E mais outra, e
outra, e outra. Ia ser uma chacina. Ia sair levado pela Cruz Vermelha, “morrido”.
—
E o Chaves?
—
Ah, ele ia chorar, claro. Soltava aqueles “pi-pi-pi-pi-pi” dele, mas fazia o
serviço.
—
Cê tá acabando com as minhas memórias de infância.
—
Foi você que perguntou. Aguenta aí que já tá acabando.
—
Ah, tem final?
—
Claro que tem. Acaba na sala de aula do Professor Girafales. O maestro linguiça
lá, nem aí, trocando torpedo de sacanagem com a nêga que ele catar depois da
finada Dona Florinda e a sala aquela algazarra.
—
Tirando o celular, até que também não é tão diferente assim.
—
Nessas entra os PMs, ou seja lá o que eles tenham em Acapulco.
—
O programa não se passa em Acapulco.
—
Foda-se, vai ficar se apegando a detalhes?
—
E o que é que cê tá fazendo até agora?
—
Cacete, quer saber como acaba ou não?!
—
Quero, fala de uma vez.
—
Eles invadem a sala já algemando o Chaves do 8. Rodou, moleque, e o escambau.
—
Matou um ricaço, se fodeu, é isso?
—
E não? Aí os PMs lá, arrastando ele pro camburão, ele olha pra câmera de novo e
fala “é que comigo ninguém tem paciência...”.
—
Até que amarrou direitinho.
—
É, só que se fosse assim não ia durar trinta anos, ia durar um mês!
—
Tem razão...
—
No quê?
—
Eu devia ter ficado quieto.
— Então por que pergunta?
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