terça-feira, 14 de abril de 2020

Quando a música era tátil



Um tempo atrás fiz algo que não fazia já há um bom tempo: comprei uns discos. Discos físicos, CDs, aquele formato ultrapassado, quase morto. Mas que ainda resistem, aguardando seus últimos suspiros. 

Eu mesmo resisti bravamente até onde pude. Comprava discos quando praticamente ninguém mais o fazia. Quando todos já baixavam em mp3 e, posteriormente, ouviam em streaming. Comprava porque ainda acreditava naquela qualidade física, tátil, e, sejamos francos, possessiva.
        
Aquele disco era meu, fui lá, escolhi, paguei, e cada escutada é prova de meu investimento em ação. Assim como o investimento do artista, que foi lá, gravou entre 10 e 14 músicas, pensou na melhor ordem para arranjá-las em um trabalho coeso, completou com um projeto gráfico que dialogasse com a sonoridade, lançando tudo num pacote atraente. Apenas para a molecada mais nova ignorar tudo isso solenemente e ouvir só uma ou duas faixas nas plataformas digitais e olhe lá.
        
Eu tenho uma personalidade de colecionador. Quando gosto de algo, gosto de ter aquilo. Sejam discos, filmes, livros, quadrinhos, gosto de ter a possibilidade de, se quiser revisitar aquela obra a qualquer momento, ela estar ao meu alcance físico, sem precisar ligar o computador para isso.
        
Nem vou entrar em méritos e deméritos de consumismo e possessividade, já fiz essa autoanálise e prefiro deixá-la só para mim. Acima de tudo isso, é simplesmente bom pegar algo na mão, sentir nos dedos. A música pode sim ser tátil e o foi durante décadas, tá aí o vinil até hoje, talvez o maior exemplo de fetichização musical, desde tirar a bolacha da capa, sentir seu cheiro característico, até o momento em que a agulha entra em contato com as ranhuras, fazendo aquele barulhinho tão próprio.
        
CDs eram assim para mim. Foi a plataforma da minha geração. Gostava do ritual inteiro. Desde abrir o plástico que embrulhava o disco novo, colocá-lo no aparelho de som (lembra deles?), manusear o encarte e, se houvesse, ler as letras enquanto ouvia as canções. Isso fez maravilhas pelo meu inglês.

No meu tempo é que era bom
        
Claro, isso era coisa de moleque, na vida adulta não é tão fácil arrumar tempo para verdadeiramente ouvir música. Escutar enquanto não se faz mais nada e não como mera atividade paralela, como ruído de fundo, para abafar aquele silêncio tão incômodo, Deus o livre de ficar um segundo sequer sozinho com os seus pensamentos...

Hoje o lugar onde mais ouço música é no carro e não em casa. Mas ainda assim comprava discos, no final mais pelo puro colecionismo, pela completude da discografia de alguma banda/artista do que por qualquer outra coisa. Já não era mais por prazer.
        
Achava que nunca ia me cansar da música, que em um momento ou outro ela sempre acharia o caminho de volta (como já havia acontecido algumas vezes). Que aqueles que diziam que não se fazia mais nada de novo bom – que não ouviam mais novidades – eram clichês ambulantes, e que isso jamais aconteceria comigo. Escrevi até textos explorando esse ângulo.
        
Mas a vida é imprevisível e, quando menos percebi, exatamente isso acabou acontecendo comigo também. E nem foi aos poucos, ainda que não seja capaz de precisar um momento específico. Mas chegou uma época em que simplesmente... desencanei. De praticamente tudo na música. Parei de comprar CDs, ainda baixava, mas mal escutava. Duas ou três vezes, se tanto, e ia para alguma pasta no meu computador pegar poeira virtual.
        
Virei o clichê que tanto combatia. Novos artistas não ouço mais. Não tenho mais saco para ir atrás, e mesmo quando alguma coisa é recomendada, dou uma orelhada e invariavelmente penso uma de duas coisas: fraco ou nada de mais. Aquela sensação incrível de moleque, de ouvir uma daquelas que seriam uma de suas bandas favoritas pela primeira vez, aquela coisa que mexia com seu cérebro e sensações físicas e emocionais, tentei recapturar muitas vezes sem sucesso ao longo desses últimos anos até me conformar de vez.

Meu gosto pessoal está formado, e nada mais vai me surpreender. Aquela coisa de “uma banda pode salvar sua vida” ficou na adolescência e início da vida adulta. E não volta mais, fato.
        
Mesmo novos trabalhos de artistas que eu gosto já não me empolgam mais. Caí naquele segundo clichê do fã, aquele para o qual os primeiros trabalhos são sempre os melhores. Artistas da música (pelo menos os do rock), diferente do vinho, não costumam envelhecer bem. Ouvia os trabalhos novos só para constar. Até que deixei de ouvir, até mesmo meu completismo antes beirando o obsessivo cedeu e caiu  de vez perante esse desencanto.
        
Não vou entrar na discussão sobre a qualidade geral dos artistas contemporâneos e/ou o fato de que a música acessível de todos para todos, a um mero clique de distância, diluiu gostos musicais e tornou menos especial o fator da descoberta. Tudo isso são assuntos maiores e que não vêm ao caso no momento.

Prateleiras físicas com poeira de verdade

A questão é que, depois de muito tempo, comprei dois discos. Numa loja. Eu sei, elas ainda existem, de vez em quando a gente até esquece disso. Tá, não foi aqui no país. Foi numa viagem que fiz pra fora. A loja (de uma franquia que aqui já foi forte, mas definhou e morreu até sair totalmente de nossas terras) estava ali, deu vontade e entrei.
        
Comparado com as gigantescas lojas de outrora, a sessão de discos era minúscula. Mas ainda tinha coisas que eu não encontraria aqui mesmo no auge dos estabelecimentos nacionais.
        
Pra ver como estava distante dessa parte tão importante da minha formação cultural: vou displicentemente dar uma olhada na seção da minha banda favorita, e me deparo com um disco que não apenas eu não tinha, como nunca tinha ouvido falar. Era uma coletânea de gravações feitas para um programa de uma rádio britânica entre os anos 1970 e 80, mas o álbum em si era do ano passado. Um ano inteiro se passou sem que eu soubesse de sua existência.

Foi uma constatação triste, saber o quanto eu me desliguei de algo que antes era tão importante para mim. Por outro lado, ao me deparar com aquele objeto estranho, por uma fração de segundos aquela fagulha reacendeu. Eu achava que tinha tudo deles, até o último lado b obscuro. Pense de novo, eis algumas versões que você ainda não ouviu. O moleque de 15 anos que um dia fui mandou um oi lá do fundo da minha consciência.

Aí me lembrei de outra banda. Sempre quis seu disco mais conhecido, mas nunca o achava para comprar. Dei de cara com uma edição especial comemorativa do seu aniversário de 20 anos. O disco remasterizado acompanhado de material extra, faixas ao vivo, demos, o esquema todo.
        
Eu consegui sentir meu sorriso se abrindo quando o peguei na mão. Naqueles breves minutos na loja, com aqueles dois CDs em minhas mãos, relembrei o que a música tem de especial para mim, e tudo aquilo que andava enterrado nos últimos tempos.
        
Claro, eu só poderia ouvi-los quando voltasse para casa, mas mesmo essa espera gerou aquela expectativa boa, do momento onde ia parar tudo (porque eu ia parar como o fazia antigamente, a ocasião pedia) para ouvi-los.

Aquela velha sensação

Nesses poucos minutos me deu saudade de voltar a comprar discos, não pela internet, como fazia já na minha chamada fase terminal, mas presencialmente. Perambular pelas gôndolas, dedilhando as caixas, tentando encontrar aquela joia perdida, escondida entre tantos outros. Não ter um objetivo definido, mas sim ser surpreendido, descobrir algo novo casualmente. Algo que torrents e streamings mataram, com suas milhões de opções na ponta dos ouvidos convidando ao descaso imediato.
        
É outra forma de se ouvir música. Nem certo nem errado. Só não é a minha forma de se ouvir música. E eu nem sou tão velho assim para renegar a tecnologia. Nada contra, ela é útil e prática. Conheci muitas bandas e artistas que do contrário jamais teria acesso. Mas repito: não é a minha forma de ouvir música.
        
Naquele encontro casual com aquela loja de discos, fui relembrado de algumas boas sensações que a minha forma de abordar a música me proporciona. Eu não estava morto por dentro para ela, apenas hibernando.
        
Bom saber que ainda era capaz de sentir um pouco daquela excitação juvenil. Agora sei que ela ainda está por aqui, é muito mais difícil trazê-la à tona, mas ainda é possível.
        
Sei também que essa compra foi um fato isolado. Não vou voltar a comprar discos com a regularidade dos bons tempos. É capaz até de passar mais alguns anos sem adquirir nenhum álbum novo (baixar na internet não conta), mas se o acaso me colocar novamente em uma situação similar, por que não?
        
Aqueles discos em minha mão, a música não apenas como meio sônico, mas também tátil, esse é o meu modo de apreciá-la. Nada contra o vazio do ciberespaço, mas música você ouve, você enxerga, está ao alcance de seus dedos, não em sentido figurado, não como metáfora para a facilidade da internet, mas no sentido literal. Eu fui, peguei, transportei. Música quando mídia tátil.
        
As pequenas alegrias. Às vezes cabem na palma da mão.

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