segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Mistérios e Paixões



Onde termina a realidade e começa a ficção? Ambos podem se misturar a tal ponto que cada qual pareça indistinguível? Essas perguntas são o ponto principal do filme Mistérios e Paixões (péssima tradução brasileira), baseado no livro Almoço Nu, de William S. Burroughs.

Nos anos 50, Bill Lee (Peter Weller, o RoboCop) é um exterminador de insetos e aspirante a escritor que acaba se viciando no pó que utiliza para matar baratas. A partir daí entra em uma viagem lisérgica onde a barreira do real e do imaginário cai, vivenciando alucinações e situações bizarras, numa trama de mistério e espionagem envolvendo insetos gigantes e criaturas de aparência extraterrestre. Situações essas que podem ou não ser o livro que Bill está escrevendo (aí vai da opinião de cada um). 

Apesar do que esta sinopse pode levar a crer, o filme não é tão insano quanto aparenta. A trama, apesar dos elementos fantásticos, faz sentido, e tanto ela quanto a narrativa são lineares. Desta forma, a película do canadense David Cronenberg se aproxima mais dos trabalhos de Luis Buñuel (o mestre do surrealismo cinematográfico) do que de David Lynch (o mestre da falta de sentido cinematográfico).

Aliás, Mistérios e Paixões poderia até ser considerado o irmão mais velho de Medo e Delírio, de 1998 e dirigido por Terry Gilliam. A temática – escritores “chapados” – é a mesma e a forma de retratá-la também, com os efeitos dos aditivos químicos jogando o espectador numa viagem incomum, estranha e onde aparentemente qualquer coisa se torna possível de acontecer. 

Mas, voltando ao filme de Cronenberg propriamente dito, apesar de segurar plenamente a atenção do espectador por sua trama esquisita e pelos simbolismos apresentados, como o pó de matar baratas como substituto à heroína e máquinas de escrever retratadas como criaturas vivas (defendendo a tese de que uma obra literária pode ter vida própria e o escritor seria apenas um canal), para quem conhece os trabalhos e a história de vida de Burroughs, a película pode agradar ainda mais.

Porque, acredite se quiser, mas muitas passagens são autobiográficas, como por exemplo, a brincadeira de Guilherme Tell. E isso prova que muitas vezes a realidade é ainda mais estranha que a ficção.  Fora que é uma diversão a mais para os fãs do escritor procurar essas referências.

Quanto ao diretor, este é um filme de sua fase mais explícita, nojenta mesmo. Chamado de um dos mais viscerais diretores do cinema moderno, o apelido se justifica por sua literalidade. Tripas, cabeças explodindo e metamorfoses de dar ânsia de vômito são características desse período, vide obras como Scanners – Sua Mente Pode Destruir (1981), A Mosca (1986) e eXistenZ (1999).

Atualmente em uma fase mais voltada para o psicológico e para a violência humana, inaugurada com Spider – Desafie Sua Mente, em 2002, e passando por Marcas da Violência (2005), chegando ao mais recente Senhores do Crime (2007), Mistérios e Paixões é uma boa pedida para quem está com saudade e quer relembrar seus trabalhos mais fortes graficamente, quase resvalando no gore.

Aliás, o filme é pouco recomendável para quem não suporta insetos. E muito menos para quem está acostumado apenas com o modelo hollywoodiano de histórias “com pé e cabeça”.

Marinheiros de primeira viagem podem se sentir desorientados com Mistérios e Paixões, mas, ao final, como o próprio filme parece pregar, não interessa o resultado, o que importa é a viagem. E essa é das mais poderosas.

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